Por Zeca Teodoro, sociólogo e cientista social, e membro do Movimento por uma Cultura de Doação.
Publicado originalmente no Vozes do MCD
Nas paredes irretocáveis da memória, Dona Hilda, responsável pela cozinha industrial, dava conta da produção de centenas de refeições diariamente servidas aos alunos de uma escola pública estadual em uma das periferias da Zona Leste paulistana. Educação para cultura de doação pode ter berço.
As questões estruturais de alimentação escolar e de uma certa “geografia da fome”, no Brasil, não são novas; ao contrário, persistem como um passado que não passa. Narrativas engajadoras pró superação dessas mazelas, sempre urgem, inspiram, retroalimentam. Além de memórias, podem fornecer orientação, retribuição, reciprocidades.
Na escola, regra clara: refeições só poderiam ser servidas a determinados perfis de alunos, sob determinados critérios. Problema: o cheiro das sopas, capazes de alcançar fronteiras imemoriais, rescendiam desde as primeiras horas matinais; carne com legumes, macarrão com feijão. Cozinhar é afeto. Fome, também.
Como as refeições não chegavam para todos, demandou-se (e a solução passava por) alguma inovação institucional: toda criança que desejasse ter acesso a essa mesma refeição, servida diariamente, deveria contribuir com algum tipo de doação para cozinha da escola. Modo ciclo de políticas públicas e parcerias público privadas, ativado.
Nos anos 1970 e 1980, nas periferias de certas regiões de São Paulo, o perfil sociodemográfico era um só: carente. Uma das características dessas regiões são as feiras livres. Não sei de quem foi a ideia, algo assim: - “vamos fazer uma lista de todas as feiras-livres (de terça-feira a domingo, às segundas, os feirantes descansam) e captar doações (talvez a expressão tenha sido outra) desses feirantes de maneira que possam enriquecer as sopas da Dona Hilda e todo mundo vai poder comer todos os dias”.
Rapidamente, na mesma velocidade com que as crianças oferecem soluções criativas e adequadas para qualquer problema na face da Terra, uma legião de estudantes entre 07 e 11 anos de idade - cursando o equivalente contemporâneo ao Ensino Fundamental 1 - transformou-se em uma máquina arrecadatória, captando e destinando alimentos frescos para consumo comunitário, tendo a escola como epicentro e a sociedade civil do entorno como apoiadora, fomentadora.
Digamos que mesmo “conjunto de métodos e de técnicas” foi exitosamente utilizado durante muitos anos, também com efeito sobre as quermesses, os bingos e as festas juninas ou de final de ano regularmente realizadas nas escolas. Aprendizagem para a vida.
Idem quanto ao uso da metodologia para arrecadação e doação de roupas e brinquedos nos dias das crianças, em outubro ou festas de São Cosme e São Damião, nos meses de setembro, articulação em forte comunhão entre diversas matrizes religiosas. 😉
Em 2020, de acordo com Censo Escolar do Inep, o Brasil contou com pouco mais de 124 mil escolas ofertando ensino fundamental, espaço gigantesco para uso e estímulo a ambientes cada vez mais favoráveis às práticas donativas.
O Mapa das Organizações da Sociedade Civil (mapaosc.ipea.gov.br), em atualização 2021, lista mais de 820 mil OSCs em todos os municípios brasileiros, inclusive pelo menos 245 mil organizações religiosas. Há muito mais.
Como em toda sociedade, a solução para problemas sociais é uma intensa e permanente articulação – nem sempre fácil ou plenamente satisfatória – que passa, seguramente, pelo senso de integração em processos decisórios complexos e de trocas em múltiplos sentidos, em múltiplas arenas, com diversidade ampla de atrizes e atores.
Em cada uma das comunidades brasileiras, em cada bairro, há um microclima e um subsistema disponível para ativação em torno de razões e motivos para doar, para ampliação dos hábitos e das atitudes em torno da dádiva, da troca. Não sobrevivem apenas de luz, há sabedoria e saberes em profusão.
E são nesses territórios que o fortalecimento amplo e integrado de organizações da sociedade civil, em uma postura de aprendizagem institucional permanente é mais urgente. Ali, os saberes e as formas inovadoras e criativas de usos e de usufruto das potencialidades desse ecossistema ajudam a integrar indivíduos e instituições, tarefa mais do que necessária, imperativa, diante dos mais recentes desafios à democracia brasileira. #porumBrasilmaisdoador
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