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De Nairóbi para o mundo: 8 mensagens do Wings Forum para transformar a Filantropia e a Doação

Por Erika Sanchez Saez é atualmente diretora Executiva do Instituto ACP, membro do Comitê Coordenador do Movimento por uma Cultura de Doação, ativista de muitas causas e pesquisadora da atuação da filantropia e sociedade civil organizada.


Arquivo pessoal

No início de outubro aconteceu em Nairóbi, no Quênia, mais uma edição do Wings Fórum – evento global realizado pela Wings para debater as tendências, desafios e rumos da filantropia e da doação no mundo.


Com o tema Transformar (Transform), o foco central das conversas realizadas ao longo dos três dias de evento foi abordar o que precisa/precisamos transformar na prática filantrópica para que ela seja de fato transformadora no sentido de contribuir para as mudanças que dizemos querer conseguir e frequentemente sentimos não estar conseguindo.

Esse texto é uma curta reflexão pessoal sobre o que ficou forte para mim em termos de prioridades para fazer acontecer a tal transformação.


Para alguém que viajou 30 horas para chegar ao encontro, como foi o meu caso, são muitos os estímulos e as informações que constroem a experiência e os aprendizados: não apenas aquilo que é dito nas mesas e plenárias, mas o espaço em que o encontro acontece, o seu entorno, o território, os sotaques, os cheiros, as comidas, cada conversa de corredor ou nas mesas...


Éramos um grupo grande de brasileiros e brasileiras, uma das maiores delegações e, embora já tivesse cruzado quase todas as pessoas do grupo, conviver durante alguns dias em um país distante também nos coloca em outro lugar de relação com os pares compatriotas e provoca conversas que certamente não teríamos em um encontro em São Paulo, tanto pela quantidade de tempo compartilhada, como pelo contexto do encontro e pelo fato de que o nosso sentido de “nós” tão longe de casa se torna mais forte.


Por isso, começo pelo fato de estarmos na África, na África negra, em um país que tem duas línguas oficiais: o inglês e o swahili, mas onde todo mundo fala pelo menos mais de uma língua - a sua ‘língua materna’, como eles mesmo dizem. E a sua língua materna é uma língua tribal. São mais de 70 tribos no país e mais de 50 idiomas. Falar sobre doação e filantropia nesse lugar nos obriga a falar sobre raça e processos coloniais. E nos convoca a falar sobre isso de perspectivas diferentes.


O Quênia foi tomado pelos ingleses no final do século XIX e se tornou um país independente em 1963, ou seja, muitas pessoas que nasceram na época da colônia estão ainda vivas. Isso muda a relação com o tema e o faz mais próximo, mais presente e mais concreto.


Assim, a primeira coisa que trago como destaque do Fórum é a constatação de que o debate sobre (1) decolonização da filantropia é uma pauta global e um desafio complexo. Ao mesmo tempo que pessoas dos quatro cantos do mundo evocam no encontro a necessidade de decolonizar a filantropia, também foi ressaltado que compreender que ela é parte do processo colonial é fundamental. A filantropia, e todos os debates em torno dela, chega no sul global como um elemento estrangeiro e importado, sem levar em conta todos os modos de exercício do ‘amor à humanidade’* que existiam com outros nomes (ou sem nome próprio) muito antes da conversa sobre filantropia tal como a concebemos atualmente.


Em diálogo com a conversa sobre decolonização, voltei pra casa com a sensação de que foi conclusão unânime do evento, pelo menos na narrativa, que (2) organizações do norte global que atuam de ‘cima pra baixo’ apoiando o sul global dizendo o que e como fazer não funciona. E acredito que é possível transportar essa mesma lógica para contextos nacionais e dizer que a premissa vale também para elites privilegiadas quando representam e agem em nível local – nas comunidades ou com os grupos vulneráveis que pretendem apoiar - com as mesmas lógicas ‘aprendidas’ do norte global.


Maravilha, parece haver alguns (quase) consensos, relativamente amplos, em relação a esses pontos. Mas então, como transformar as práticas?


O encontro trouxe também alguns caminhos que apontam as direções que devemos caminhar. Mais do que respostas super concretas, ficou para mim um punhado de ideias e visões inspiradoras. No topo da lista está a consciência de que (3) precisamos de transformação radical, não incremental. Mudança sistêmica. E para isso precisamos de transformação na governança, nas mentes dos donos do dinheiro. E aqui, vale dizer que havia pouquíssimos ‘donos do dinheiro’ participando do encontro (esse seja talvez o nosso maior desafio).


De mãos dadas a este desafio, vem outro: (4) o que precisa ser transformado não é o conceito de filantropia, mas sim as instituições que representam a filantropia. E mudar organização não é tarefa fácil. É mudança de cultura. É processo e leva tempo, mas é preciso começar. E aquilo que está em processo de elaboração precisa ser criado já levando em conta novas premissas, precisa já começar a partir de ideias e bases transformadas.


(5) Compreender que a filantropia tem um papel político no combate às desigualdades é parte da tomada de consciência que leva à mudança. Da mesma forma, a compreensão de que (6) ‘você é porque nós somos’ é uma premissa de qualquer sociedade com uma cultura de doação fortalecida.


E sobre escolhas e poder, quem tem recursos para doar precisa se lembrar e praticar pelo menos duas coisas:


(7) Temos (nós, a filantropia) que apoiar quem está apoiando a vida. Vale demais pensar o que isso significa e como é possível colocar isso em prática em cada escolha que fazemos.


E por fim, (8) precisamos de respostas mais orgânicas indígenas/comunitárias/tradicionais/ancestrais na nossa atuação como filantropia. Mas, será que a filantropia tem hoje esse repertório de respostas? Como adquiri-lo ou construí-lo? Quem pode nos ajudar nesse aprender e (re)criar?


As oito ideias compartilhadas neste texto foram compartilhadas por participantes do Wings Fórum. Algumas vezes uma mesma ideia foi repetida várias vezes de formas um pouco diferentes. Em alguns casos, eu talvez tenha escrito a frase de maneira praticamente literal, em outros, da forma como elas repousaram na minha memória. Com algumas poucas exceções, já não me lembro quem disse o que e quando e isso torna impossível a possibilidade de creditá-las, mas de qualquer forma, fica aqui registrada a menção.


 

*A palavra filantropia tem origem em duas palavras gregas. A primeira é filos, que quer dizer afeição, amor. E a segunda é antropo, que quer dizer homem, humanidade. Portanto, ao pé da letra, filantropia é 'amor pela humanidade'.



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