A experiência de manter uma disciplina sobre mobilização de recursos para os OSCs dentro da Fundação Getúlio Vargas
Por Fernando Nogueira,
Professor da FGV EAESP, presidente do conselho do Instituto Doar e membro do Movimento por uma Cultura de Doação
Para começar, um desafio: como o Movimento Arredondar (https://arredondar.org.br/) pode se tornar mais sustentável? Aprofundar parcerias existentes, buscar novos parceiros, investir mais em doações online ou ainda aumentar sua taxa administrativa de 10 para 20%? É esse tipo de discussão que venho tendo toda 6ª feira neste segundo semestre de 2022 com alunos e alunas da disciplina “Captação de recursos e sustentabilidade em organizações da sociedade civil”, no curso de graduação em Administração Pública da FGV de São Paulo (FGV EAESP).
Tem sido uma experiência rica e desafiadora. Compartilho aqui alguns dos aprendizados desse caminho, esperando contribuir com a diretriz 4 do Movimento por uma Cultura de Doação (MCD), “Fortalecer as organizações da sociedade civil”. Que possa servir de inspiração para outras iniciativas, dentro ou fora do ambiente acadêmico.
O que está sendo feito
Esta é uma disciplina eletiva, ou seja, não é parte da carga obrigatória que os futuros gestores públicos devem fazer. Ainda assim, 21 alunos e alunas optaram por se inscrever na disciplina, mostrando o interesse no tema e nas organizações da sociedade civil como um todo.
O programa da disciplina (https://bit.ly/ProgCapt) combina aulas teóricas e discussões de textos acadêmicos com interação com a prática, por meio de casos, palestras e trabalho aplicado. Este trabalho desafia grupos de alunos e alunas a criar um plano de captação para organizações reais mobilizar recursos no Dia de Doar 2022 (https://diadedoar.org.br/).
O que motivou a criação da disciplina
Tenho experiência de mais de 10 anos ensinando gestão de organizações do terceiro setor na FGV, disciplina obrigatória na formação em administração pública. Captação e sustentabilidade fazem parte destas aulas e sempre despertam muito interesse e discussão, mas não era possível se aprofundar nos temas dadas as outras demandas do curso.
Ao longo do tempo, amadureci a ideia de oferecer uma eletiva focada no tema de captação e sustentabilidade. O curso de administração pública da FGV EAESP, um dos mais tradicionais do país, cada vez mais forma gente para trabalhar no que chamamos de “campo público ampliado”: não só diretamente em governos, mas também em ONGs, fundações, organizações internacionais, negócios sociais e empresas (em áreas de responsabilidade social ou ESG). Nesse quadro, é fundamental formar profissionais que entendam a importância de uma sociedade civil mais sustentável e pessoas e organizações mais generosas.
Compartilhando aprendizados
A experiência ainda está em curso, e vai levar mais tempo para entender o caminho completo, o que deu ou não certo e seus resultados de curto e longo prazo. Mas já é possível compartilhar um desafio e dois aprendizados.
Desafio: falta mais material pedagógico em português
Ainda que a produção acadêmica sobre terceiro setor, sociedade civil e suas organizações tenha crescido nas últimas décadas, ainda temos falta de bom material pedagógico em português. A pesquisa e a publicação de artigos, livros, relatórios de pesquisa e casos sobre captação e sustentabilidade ainda é pequena e incompleta, com lacunas em muitos assuntos importantes.
Temos hoje já bastante publicações feitas por profissionais, consultores e organizações que trabalham no campo, muitas das quais estão sistematizadas em repositórios como o Sinapse (https://sinapse.gife.org.br). Mas falta mais quantidade e qualidade em nossa produção acadêmica, principalmente explorando desafios e oportunidades da captação de recursos na realidade brasileira.
Chama atenção que dois dos casos discutidos em sala de aula demonstram essa dificuldade. O primeiro, publicado em português, se passa em Portugal (https://bit.ly/Caso1_GVcasos); o segundo, sobre uma experiência brasileira, foi publicado no exterior e em inglês (https://bit.ly/Caso2_Arredondar). Pesquisadores brasileiros, está lançado o desafio, fundamental para expandir aulas, cursos e discussões sobre o tema.
Aprendizado 1: é preciso um vilarejo...
A expressão “É preciso um vilarejo” (“it takes a village”) supostamente vem de um ditado africano, que enfatiza como a educação de crianças é feita por todos, não só pelos pais ou em ambientes formais como escolas. É uma reflexão poderosa, mas também é uma dica prática. Formar profissionais mais completos, competentes e éticos é um desafio muito maior do que um único professor isolado consegue dar conta.
É claro que ninguém cria um curso sozinho, do nada. A gente se apoia nos aprendizados e vivências de toda uma vida. Escolhemos textos e autores que já desbravaram os assuntos. Mas a vivência de parceria veio sobretudo do acolhimento que esta disciplina teve no Movimento por uma Cultura de Doação, um dos muitos vilarejos que mobilizei para essa iniciativa.
Destaco aqui a dedicação voluntária e generosa de muitos membros do MCD que doaram seu tempo e conhecimento até agora para a turma, com links para quem quiser saber mais.
Tiana Lins compartilhou dificuldades e conquistas de trabalhar com Desenvolvimento Institucional, mostrando como organizações sustentáveis precisam de muitas capacidades complementares à captação de recursos (https://bit.ly/DesInstWCM).
Ruy Fortini deu uma oficina prática sobre o Canvas de Captação de Recursos, uma metodologia de criação de planos de captação. Ela está sendo usada como base do trabalho semestral (https://doare.org/canvas-de-captacao).
Nina Valentini e Ari Weinfeld assistiram à discussão do caso Arredondar e, em seguida, deram seu depoimento sobre as muitas barreiras e conquistas que viveram desde que a organização foi criada. Eles compartilharam também o que têm feito para lidar com as questões apresentadas no começo deste texto, mostrando como impacto social e sustentabilidade são jornadas sem fim, mais do que apenas um destino ou objetivo que podemos atingir completamente (https://bit.ly/Caso2_Arredondar).
Também contamos com o apoio fundamental de Carol Farias e João Paulo Vergueiro, do Dia de Doar / ABCR, pelas trocas constantes e dicas.
Aprendizado 2: é preciso ter clareza nos objetivos da disciplina
Ao planejar um curso, é preciso refletir muito sobre o que (e como) queremos ensinar. Nunca é possível passar tudo o que queremos. Não importa se é uma palestra de 10 minutos, uma oficina de 2 horas, uma disciplina de 30 horas (como é neste caso): sempre vai ficar algo importante de fora. Ter clareza no que é fundamental e o que precisa ser priorizado aumenta as chances de aprendizado entre alunos e alunas.
Esse foco deu uma clareza: a disciplina será bem-sucedida não apenas se formar captadores efetivos, mas sobretudo pessoas que entendam a importância de uma sociedade civil mais sustentável e fortalecida. E que levem esse aprendizado onde quer que trabalhem – em ONGs, mas também em governos, empresas, fundações...
Essa clareza também ajuda a fazer escolhas temáticas: dar espaço a discussões que entendam o lado político e social da captação de recursos, não apenas seu lado técnico e gerencial. Captar é mais do que gerar dinheiro; é um processo que dá oportunidade de conexão, de sensibilização a causas e de ampliação da legitimidade de uma organização ou movimento. Mobilizar recursos nunca deveria ser um fim em si mesmo: é um meio para viabilizar a intervenção que queremos no mundo.
Finalmente, é preciso lembrar que não aprendemos apenas conceitos e teorias, mas também práticas, comportamentos, habilidades e valores. Ter isso em mente deixa nosso objetivo pedagógico mais claro. Também dá diretrizes sobre como educar para uma cultura de doação. É fundamental incluir oficinas, discussões com profissionais, lideranças e ativistas, debate de casos reais e aplicação das ferramentas em trabalhos práticos. Assim, aumentamos as chances de formar profissionais bem qualificados e cidadãos competentes, motivados, éticos e generosos.
Este conteúdo contempla a diretriz 1 do Movimento
por uma Cultura de Doação. Conheça aqui as diretrizes.
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