Por Flora Bitancourt, empreendedora social, sócia da Impact Beyond, sócia do Socialab no Brasil, diretora do fiiS no Brasil e presidente voluntária do Instituto Movimentarte, parte da rede de empreendedores do Fórum Econômico Mundial, Global Shapers. co-líder da campanha fome de ação e da plataforma MAIS (Mapa do Impacto Social).
Publicado originalmente no Vozes do MCD*
Os efeitos da pandemia continuam a aprofundar as desigualdades sociais no país. Estamos vendo e vivendo a inflação crescente, a diminuição da renda e a retomada do país ao mapa da fome pelas Nações Unidas. Mesmo sendo um dos principais produtores de alimentos do mundo, o Brasil possui hoje cerca de 33 milhões de pessoas passando fome.
Frente a esse grande desafio, vemos um movimento de organizações distribuindo milhares de cestas básicas desde o início da pandemia, movimentos que garantiram a sobrevivência de inúmeros brasileiros. Situações como essa despertam o senso de urgência sobre o investimento social no Brasil e a necessidade de olhar para a atuação das organizações da sociedade civil (OSCs) no território.
Apesar da relevante atuação dessas organizações, os desafios para superação do cenário preocupante deixado pela pandemia ainda são inestimáveis, sendo importante o fortalecimento e união dos diferentes setores e instâncias para lidar com isso. No Brasil, costumamos ver que as doações, principal fonte de recurso das OSCs, são destinadas sempre para o mesmo grupo de grandes organizações, normalmente localizadas no Sudeste do país e que, não raro, são lideradas por homens, revelando um cenário que reproduz e fortalece as desigualdades e privilégios do nosso país. A esse dado se contrapõe o resultado de uma pesquisa realizada pela Rede Penssan em 2022: mulheres e pessoas negras são os grupos mais impactados pela fome.
Os investimentos sociais precisam ser acessíveis e democráticos. Em poucas conversas e conexões – e após liderar uma campanha que tinha a missão de chegar em comunidades que não estavam tendo acesso às doações – pude perceber a quantidade de pessoas ficaram de fora desse sistema de solidariedade. Se ampliarmos essa lente para todo o setor de investimento social privado (recurso destinado por empresas para o impacto social), essa centralização de recursos fica ainda mais alarmante.
A partir de nossas pesquisas, levantamos três hipóteses que foram validadas por outras organizações e que podem ajudar a entender esse contexto. A primeira é de que existe no imaginário das pessoas uma visão distorcida do trabalho das organizações sociais, na qual pessoas de má-fé estão fundando ONGs para receber verbas, mas não prestam os serviços sociais. A segunda é que o brasileiro associa a qualidade do trabalho da organização social a seus números e tamanho, o que dificulta o acesso de ONGs menores aos recursos. A terceira é de que a cultura de doação ainda está em construção no Brasil.
A partir de reflexões junto ao ecossistema de organizações que apoiam o terceiro setor, entendemos que uma solução para reverter esse cenário seria a construção de um mapeamento das organizações da sociedade civil do Brasil, com o desenvolvimento coletivo de uma plataforma que fosse capaz de dar visibilidade e ampliar a quantidade de dados no setor. A discrepância entre os dados públicos dificulta a identificação dessas OSCs, uma vez que fontes diferentes apontam que existam entre 236 mil e 781 mil ONGs e OSCs no Brasil. Por isso, lançamos o MAIS (Mapa do Impacto Social), plataforma que pretende ser o maior banco de dados sobre o terceiro setor brasileiro, levando também em consideração o impacto que geram no alcance da Agenda 2030. Por meio dessa iniciativa, as OSCs poderão atualizar suas informações para terem visibilidade e alcançarem potenciais investidores, parceiros e doadores. Já as pessoas e empresas interessadas em investir poderão ter acesso a informações precisas sobre o cenário do terceiro setor no país, inclusive às iniciativas fora do eixo Rio-São Paulo, que costumam ter menos exposição e apoio.
Segundo levantamento realizado pelo Mapa do Impacto Social (MAIS), a atuação das OSCs estão diretamente relacionadas a, pelo menos, um terço das 169 metas definidas pela Agenda 2030, e mais de 85% dessas organizações atuam alinhadas aos ODS 1 e ODS 10, de erradicação da pobreza e redução das desigualdades.
A colaboração também se mostra como uma importante estratégia para romper com esse cenário e ampliar os debates sobre o tema. Precisamos transformar o olhar de competição dentro desse ecossistema e pensar em soluções estruturantes que aproximem lideranças sociais de todo o país e que transformem o olhar sobre as pessoas e instituições empenhadas na construção de uma sociedade mais igualitária.
* O Vozes do MCD é um espaço onde integrantes do Movimento podem compartilhar experiências e reflexões sobre doação. As opiniões expressas nos textos publicados não necessariamente refletem o posicionamento oficial do MCD.
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