Por Marcelo Nonohay, fundador da MGN e integrante do Movimento por uma Cultura de Doação
Porto Alegre, 09 de maio de 2024. Em meio a tantos atos de solidariedade, ações incansáveis de voluntários e voluntárias e a mobilização de doações de todo o país, queria contar um pouco dos meus primeiros dias em meio ao enorme desastre que o meu estado está sofrendo.
Inundado pela Tensão
Desde as primeiras chuvas torrenciais que assolaram o Rio Grande do Sul no dia 27 de abril, o RS mergulhou em uma luta angustiante contra a força das águas. O Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), emitiu alertas incessantes, mas nada poderia preparar completamente a população para a voracidade dos desastres socionaturais que se seguiram.
Enquanto as ruas se transformavam em rios e os céus despejavam sua fúria, a tragédia começava a se desenrolar diante de nossos olhos. No dia 1° de maio, os estragos se tornaram generalizados, e foi nesse turbilhão de caos que me encontrei, convocado por um parceiro a operacionalizar doações em Porto Alegre.
Uma Corrida Contra o Relógio: Negociações em Meio ao Caos
Dia 02 de maio - Enquanto a cidade se debatia sob o alarmante aumento no nível das águas, eu me vi imerso em uma missão vital: garantir que os mais afetados tivessem pelo menos um pouco de conforto e proteção. A Defesa Civil apontou a urgência na provisão de colchões e cobertores, e assim comecei minha busca por fornecedores.
Mas o destino parecia conspirar contra nós. O primeiro fornecedor de colchões que me foi indicado permaneceu em silêncio, possivelmente afetado pelas mesmas forças que devastavam as cidades do Vale do Taquari. Enquanto isso, eu encontrei uma loja que poderia prover cobertores. Comecei a buscar alternativas para os colchões e decidi efetivar as compras na manhã seguinte.
Logo no início do dia 03 de maio consegui o fornecedor de colchões, fiz o pagamento e tentei retomar o contato com a loja dos cobertores. As mensagens não recebiam resposta. Busquei a localização da loja no mapa e vi que ela está localizada no centro de Porto Alegre que acabava de ser invadido pela água. Nesta mesma hora, uma outra pessoa da minha equipe que estava negociando a compra de caixas para a coleta de doações também perdeu contato com o fornecedor de papelão, igualmente afetado pela cheia.
A Esperança em Meio ao Desespero: Uma Nova Chance de Ajudar
Apesar dos obstáculos, tínhamos urgência em encontrar alternativas. Um atacado próximo ao aeroporto ofereceu uma oportunidade de garantir cobertores para os desabrigados. A vendedora me garantiu que a região não está afetada pelas cheias, porém essa loja não faz entregas. Decidi pegar o meu carro para garantir a entrega ainda na sexta-feira, pensando que poderia oferecer uma noite um pouco mais acolhedora para algumas pessoas. Cheguei na loja às 17:30 e, de fato, a região tinha apenas a umidade da chuva, sem sinais de alagamento. Comprei os cobertores e acelerei para a Fundação de Bancos Sociais para fazer a entrega. Sucesso!
Uma Batalha sem Trégua: Superando Desafios a Cada Passo
A esta altura, muitas pessoas na cidade se mobilizavam em grupos de voluntários e centros de coleta de doações. Enquanto as águas continuavam a avançar, novos desafios surgiam. A prefeitura clamava por mais auxílio, e eu me vi apoiando esforços para garantir a compra de mais colchões, cobertores e toalhas.
Já estávamos no dia 04 de maio, sábado. Às 11:30 uma parceira me procurou pedindo apoio para operacionalizar algumas compras para novas doações. Eu indiquei o atacado onde comprei os cobertores e expliquei que não havia alagamento no dia anterior. Por volta de 13:00 já existia uma negociação realizada com o atacado para a compra de itens diversos e uma outra negociação com uma rede do varejo para a entrega de um grande número de colchões. É sábado e precisava garantir o pagamento para poder liberar a entrega dos produtos. Paguei dois boletos da loja de varejo e mandei comprovante para a liberação dos colchões. Perto das 14:00, tentei fazer o pix para o atacado, porém ele foi rejeitado pelo alto valor. Tentei contato com o banco para liberar mais limite, porém sem sucesso. Uma pessoa sugeriu que eu avaliasse se o atacado tem conta no mesmo banco e, sim eles tinham! Consegui realizar a transferência e mandar o comprovante por volta de 15:30. Agora era necessário que a minha parceira encontrasse um caminhão para fazer o frete. Neste horário recebo uma foto da porta do atacado: "a água está chegando".
Havia uma leve lâmina d'água no mesmo local onde eu havia estacionado o meu carro menos de 24h antes. Às 16:00 chega a notícia de que um caminhão que fazia entregas na PUC poderia ir buscar as mercadorias para entregar nos abrigos da prefeitura. Uma enorme alegria toma conta de mim. Eis que às 17:30 o caminhão chega ao atacado, porém a água já havia invadido o prédio e a Defesa Civil pediu aos funcionários que evacuassem a empresa. Ficamos muito tristes, pois depois de toda a tensão e esforço, parecia que não conseguiríamos ajudar. Conseguimos, no entanto, garantir que os colchões fossem doados.
O início de uma longa jornada
05 de maio - começamos o dia com novos desafios, pois a água invadia bairros muito populosos. O esforço agora era de viabilizar o aluguel do maior número de barcos possível. Conseguimos viabilizar uma equipe de 7 barcos que vem trabalhando desde então salvando muitas vidas.
Desde o dia 06, estamos vendo as frentes de atuação aumentarem cada vez mais. São novas campanhas de arrecadação em dinheiro, destinação de bens e serviços essenciais, trabalho de voluntários e voluntárias.
Passaremos a fase emergencial, teremos a necessidade de atendimentos assistenciais por um longo período e ainda vamos nos unir pelo esforço de reconstrução.
Minha impressão é que alguns (duros) aprendizados que tivemos como sociedade ao longo da pandemia tiveram reflexos importantes: as pessoas logo entenderam que precisam ajudar. As doações são chave para garantir a minimização de tantos danos.
Por outro lado, os impactos das mudanças climáticas colocam em xeque a infraestrutura das cidades e com isso a própria capacidade de articular e mobilizar doações. Assim como as cidades e comunidades precisam se tornar mais resilientes, o ecossistema de doações precisa pensar em como estar preparado para atuar nestes casos.
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