Entre a dádiva e o financiamento: por que é preciso investir em quem já doa
- culturadedoar
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Por Lua Braga Batista pesquisadora sênior que atua nas áreas de gênero, raça e justiça socioambiental e integrante do Movimento por uma Cultura de Doação.

A cultura de doação no Brasil constitui-se como um campo atravessado por múltiplas complexidades históricas e sociais. A prática do doar não está restrita a um segmento específico: manifesta-se em diferentes classes, territórios e sociabilidades. Entretanto, o que se doa, as formas pelas quais a doação se materializa e os circuitos pelos quais ela circula revelam dinâmicas desiguais que merecem atenção crítica.
De um lado, observa-se a filantropia tradicional, orientada pela lógica hierárquica do “quem doa” e “quem recebe”, em que a doação assume contornos institucionais e performativos, frequentemente associada ao reforço de capital simbólico e econômico. De outro, as periferias urbanas e territórios populares constituem espaços centrais de uma cultura da dádiva e da solidariedade cotidiana. Esses contextos operam segundo lógicas relacionais e coletivas, sustentando práticas de cuidado, redistribuição e reciprocidade.
O paradoxo emerge justamente no descompasso entre a potência dessas práticas solidárias e a escassez de recursos financeiros destinados a elas. O problema não reside, portanto, na ausência de doação, mas na insuficiência de mecanismos de financiamento que reconheçam e fortaleçam aqueles e aquelas que já produzem e mantêm circuitos de doação e solidariedade em contextos de vulnerabilidade.
Nas periferias brasileiras, a doação não é um gesto esporádico, mas uma tecnologia cotidiana de sobrevivência. Ela se materializa no tempo de cuidado de uma mãe, no alimento compartilhado pela vizinha, nos pequenos gestos que sustentam a vida comunitária. Como observa Rafis Martins, a essência dessa cultura reside no cuidado mútuo e na proximidade. Trata-se de um ciclo contínuo de dar, receber e retribuir, em consonância com a lógica da dádiva descrita por Marcel Mauss em seu clássico Ensaio sobre a Dádiva. Essa dinâmica relacional sustenta a vida coletiva e carrega a sabedoria ancestral transmitida de geração em geração.
Pesquisas recentes — como as conduzidas pela Iniciativa PIPA e pelo Fundo Agbara — evidenciam que essas redes de apoio são lideradas, majoritariamente, por mulheres negras submetidas a jornadas exaustivas. A cultura é mobilizada como alicerce para ações em saúde, educação e geração de renda, impactando centenas, por vezes milhares de pessoas, com pouquíssimo recurso financeiro externo. A discrepância é flagrante: muitas dessas iniciativas operam com menos de R$ 5 mil ao ano, sendo a maior parte desse valor oriunda do próprio “bolo” da comunidade. Em outras palavras, quem doa tempo, cuidado e até a própria vida é, paradoxalmente, quem precisa se autossustentar para manter a engrenagem solidária em movimento.
Esse cenário revela uma lógica perversa: ao não reconhecer e financiar adequadamente essas práticas, a filantropia tradicional reforça a invisibilidade e a sobrecarga das lideranças periféricas. Ao privilegiar projetos pontuais, altamente burocratizados e desconectados da realidade cotidiana, reproduz-se um ciclo de precariedade em vez de se fortalecer aquilo que, de fato, constitui a infraestrutura da democracia e da vida coletiva.
O racismo estrutural na cultura de doação
Aqui, a dimensão relacional da doação se choca com o racismo e o preconceito. O que falta para a filantropia se relacionar com as periferias e fazer o dinheiro chegar lá? A resposta é simples e complexa ao mesmo tempo: confiança.
Mas o que impede essa confiança? A desconfiança não é neutra; ela é enraizada no preconceito histórico. Há uma visão de que iniciativas periféricas são menos "profissionais", menos "eficientes" ou menos "dignas de investimento" do que as grandes instituições do eixo sudestino. O que se ignora é que essa "ineficiência" é uma consequência da falta de recursos, e não sua causa. Doar para quem já doa, nesse cenário, é enfrentar o racismo estrutural que impede o reconhecimento da potência e do profissionalismo das lideranças negras e periféricas.
Inverter a lógica é fundamental. A pergunta não deve ser “para quem doar?”, mas “como investir em quem já doa?”. Essa mudança de perspectiva desloca a filantropia de uma visão caritativa para uma abordagem política e estrutural. As periferias não podem continuar sendo vistas como territórios de carência: elas são territórios de abundância: de saberes, de cultura e de solidariedade. O financiamento, nesse sentido, deve ser compreendido como investimento na potência existente, e não como concessão de caridade.
Isso implica oferecer apoio flexível, de longo prazo e baseado na confiança, substituindo editais rígidos e relatórios intermináveis por recursos que possibilitem planejamento, autonomia e sustentabilidade das ações locais. Como defende Albert França França, doar para esses coletivos é um ato político, pois fortalece a capacidade de enfrentamento das desigualdades estruturais.
Por fim, é imprescindível reconhecer e remunerar o trabalho das mulheres negras que, historicamente, têm sustentado essas redes de solidariedade com seus corpos e seus tempos. Doar para quem já doa significa, também, garantir dignidade, descanso e possibilidade de autocuidado a essas lideranças.
A filantropia do futuro no Brasil só terá relevância se for capaz de se articular com a cultura de doação já existente, em vez de impor modelos externos e descolados da realidade nacional. Somente assim será possível construir um futuro mais justo, democrático e enraizado nas práticas solidárias que continuam a pulsar.
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