O Bom Coração não basta: Gestão e Tecnologia na construção da confiança para o Investimento Social
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Por Rodrigo Franzot, CEO da Bliiv e integrante do Movimento por uma cultura de doação.

Durante anos, minha participação cívica esteve focada no ato de doar. Como muitos brasileiros, eu fui ensinado pela minha família, desde a infância, que minha parte era de doar tempo, ou dinheiro. Era um gesto de apoio fundamental, mas que, na minha cabeça e na de muitos, parecia encerrar ali a responsabilidade. Mas uma indignação silenciosa começou a crescer em mim. Eu via as mesmas organizações, lideradas por pessoas admiráveis, presas em um ciclo vicioso, o do 'pires na mão'.
Todo mês, a mesma angústia para pagar as contas. Toda campanha, a mesma dificuldade para provar seu valor. O "passar o pires" já não estava funcionando na minha cabeça. Ele aliviava a dor imediata da causa, mas não garantia a saúde de quem cuidava dela.
Minha inquietação me levou a estudar o setor. Descobri, ao fundar a Risü há mais de 12 anos, que as OSCs são vitais em todo o planeta, até nos países mais ricos. Isso acontece porque o Estado, por definição, não consegue, e nem deve chegar em todas as "quinas" da sociedade. O mercado, por sua vez, só age onde vê lucro. Já as OSCs operam justamente nesse espaço complexo, atendendo demandas que nem o Estado nem o mercado conseguem resolver. A Pesquisa Doação Brasil 2024, do IDIS, confirma a percepção dessa importância. A grande maioria dos brasileiros (85%) vê as instituições sociais ou ONGs como responsáveis pela solução dos problemas do país. Temos um grande ganho de imagem aqui.
Sim, cada vez mais pessoas entendem que temos um setor vital, responsável por executar soluções complexas. Contudo, tratamos o Terceiro Setor com uma lógica injusta. Exigimos que as OSCs resolvam problemas que o próprio sistema cria, mas insistimos que o façam apenas com "bons corações" e o mínimo de estrutura.
Foi lá, quando tive esse “estalo”, que meu "porquê" mudou.
Foi aí que meu "porquê" mudou.
Percebi que o maior gargalo não era a falta de generosidade das pessoas. O brasileiro é, sim, generoso. E colocar a culpa apenas na sociedade civil me parecia algo como o padeiro colocar a culpa nas pessoas do bairro por não comprarem o pão da sua padaria, mesmo que ele nunca tivesse colocado-os na vitrine. A questão central, portanto, não é a falta de generosidade, mas a falta de confiança gerada por essa "vitrine" vazia.
E os dados da Pesquisa Doação Brasil são alarmantes nesse sentido.
O problema era a fragilidade da ponte entre o doador e a causa. O que sustenta essa ponte é a confiança.
Pela primeira vez, a "falta de confiança ou transparência" superou as condições financeiras. Ela se tornou o principal motivo (38%) para quem não doa há mais de cinco anos não o fazer.
Apenas 30% dos brasileiros acreditam que a maior parte das ONGs é confiável.
E só 33% acham que elas "deixam claro o que fazem com os recursos que aplicam".
Essa desconfiança não é sobre o "bom coração" do fundador. Ninguém duvida da intenção. A desconfiança nasce da dificuldade que muitas organizações têm em demonstrar seu profissionalismo.
É sobre a falta de ferramentas de gestão, de comunicação clara, de processos financeiros visíveis.
Quando uma OSC não se vê como um CNPJ sério, ou quando não tem recursos para ser gerida como tal, ela não consegue comunicar seu impacto de forma clara. E se ela não comunica seu impacto, ela não gera confiança.
O resultado é o que a pesquisa mostra, a fidelização dos doadores está em queda livre. O percentual de doadores que afirmam doar "sempre para as mesmas instituições" caiu de 69% em 2015 para apenas 49% em 2024. A doação mensal, pilar da sustentabilidade, também caiu de 51% (2020) para 39% (2024).
O ciclo do "pires" está falhando porque os doadores mudaram.
Foi nesse ponto que minha jornada empreendedora começou. Embora entendesse a importância, também entendi que “apenas” doar para as OSCs já não era o sanava minha dor. Eu precisava auxiliá-las a se fortalecerem para que pudessem captar mais doações e transformar mais vidas.
A boa notícia é que, alguns anos depois, o dinheiro continua existindo. A mesma pesquisa aponta que os doadores estão mais criteriosos e doando valores maiores. A mediana da doação anual subiu de R$ 300 para R$ 480, e o volume total de doações institucionais bateu o recorde de R$ 24,3 bilhões.
O que esses números nos dizem? O dinheiro não sumiu. Ele nunca deixou de existir. Na verdade ele se multiplicou, mas está migrando de forma rápida para onde encontra profissionalismo.
Você pode não concordar comigo, e eu entendo. Mas, não podemos discutir com os números. Na mesma pesquisa há a resposta para a pergunta “O que faria os não doadores mudarem de ideia?” A pesquisa responde. As principais respostas são: "Saber como o dinheiro está sendo usado" (20%), "Conhecer uma organização em que confie" (19%) e "A entidade ser transparente ou prestar contas" (15%).
Isso tudo é gestão. É governança. É comunicação. É segurança nas transações financeiras. É controle sobre dados. É tecnologia.
Mas precisamos ter empatia e ser realistas. Quando falamos em governança, não estamos exigindo que a pequena organização da periferia, que luta diariamente para pagar a conta de luz, tenha um conselho deliberativo complexo, políticas de conformidade caríssimas ou publique balanços auditados que custam dezenas de milhares de reais. Essa é a realidade de grandes institutos e fundações, não da maioria esmagadora das OSCs que estão na ponta.
A profissionalização que precisamos levar para a base do terceiro setor é outra. É sobre dar a elas ferramentas acessíveis para que possam ter clareza sobre suas próprias finanças. É sobre ensiná-las a organizar seus cadastros de doadores, a prestar contas de forma simples, mas honesta.
A profissionalização, nesse nível, não é sobre burocracia corporativa, é sobre eficiência e transparência possíveis. É sobre dar ao gestor da OSC, que hoje faz tudo sozinho (o financeiro, o pedagógico, a captação e a limpeza), o mínimo de tecnologia para que ele possa gastar seu tempo naquilo que realmente importa: a missão.
Aqui, podemos traçar um paralelo direto com a revolução que a Educação viveu no país com a chegada do Ensino a Distância. No início, o EAD foi tratado com enorme preconceito, visto como um ensino de segunda classe. No entanto, a tecnologia, com as plataformas de aprendizado, as videoaulas e as bibliotecas virtuais, quebrou barreiras geográficas e econômicas. O EAD democratizou o acesso ao ensino superior em um país continental. A tecnologia não apenas barateou o processo, ela forçou uma revisão dos métodos de ensino.
O terceiro setor precisa da sua própria revolução tecnológica. Ainda tratamos gestão de alto nível como um luxo. O líder de uma pequena OSC no interior, que lida com a fome, não tem acesso a essa formação. Precisamos levar educação e tecnologia de ponta para os territórios. Isso significa criar plataformas acessíveis, programas de mentoria que possam ser vistos pelo celular, e cursos práticos que ensinem a construir um plano mínimo de captação ou a usar uma ferramenta básica de gestão financeira.
A tecnologia precisa deixar de ser um "luxo" e se tornar a ferramenta operacional básica. E o mais urgente é que o terceiro setor já está ficando para trás. Em plena era digital, muitas organizações ainda dependem de métodos arcaicos de captação, como a rifa, a venda de camisetas ou o depósito em conta corrente.
Elas perdem doações todos os dias porque não oferecem caminhos simples, como o PIX, o pagamento recorrente no cartão de crédito ou uma página de doação transparente.
A dificuldade em receber é o primeiro sintoma.
E se tudo isso parece muito tecnológico para as mais simples, se passarmos a falar da revolução que a Inteligência Artificial promete, tudo vai passar a parecer ficção científica. Mas, não. A tecnologia não é, e não deve ser mesmo, inacessível. E IA não é ficção científica. A tecnologia e, sobretudo a IA são promessas que já estão sendo cumprida em muitas OSCs do País. E, quer mais? Pode ser o maior salto de produtividade da história para organizações com pouquíssimos recursos.
A IA não é apenas um robô de conversa para responder dúvidas. É sobre usar modelos de linguagem para ajudar aquele gestor sobrecarregado a escrever um projeto para um edital, economizando dias de trabalho. É sobre usar ferramentas de análise para organizar os dados de seus beneficiários e finalmente entender onde seu programa está tendo mais impacto.
É sobre automatizar a criação de relatórios de transparência, ou analisar quais tipos de comunicação geram mais engajamento, sem precisar contratar uma agência cara.
O grande problema, e o ponto mais político da questão, é que, mais uma vez, o terceiro setor corre o risco de ficar para trás. Poucos sabem do pouco que falei acima. A tecnologia sempre chega primeiro às grandes empresas e aos setores que geram lucro. O terceiro setor, que cuida do que é mais essencial, geralmente recebe as sobras, anos depois. E a história pode se repetir, mais uma vez. Precisamos de um movimento para levar letramento digital e acesso a essas novas ferramentas para a base do setor social. E é aqui que iniciativas e plataformas, como a Bliiv (empresa que fundei), Doare, Trackmob e tantas outras companheiras de luta, se mostram tão importantes. Elas nascem justamente da tentativa de simplificar essa jornada, de criar pontes e oferecer as ferramentas que as organizações precisam para se fortalecer, para captar melhor e para gerir com mais clareza. Elas são parte dessa necessária revolução.
Precisamos, coletivamente, mudar nossa mentalidade. O "bom coração" é a ignição, é a faísca. Mas não é o combustível. O combustível que move a transformação social de verdade é a gestão, a estratégia e a eficiência. E, hoje, não consigo ver tudo isso sem o auxílio da tecnologia.
Para que as OSCs transformem futuros, elas precisam ser tratadas como os CNPJs potentes que são. E elas precisam de apoio para isso, não de julgamento.
Meu convite a você, leitor, é que identifique esses mesmos problemas. A mudança na cultura de doação não virá apenas de doar mais. Virá de exigir e, principalmente, de apoiar o profissionalismo de quem está na ponta. Pois é isso que o doador espera e é sobre ele que estamos falando. É dele que as OSCs precisam.
Assim, conseguiremos, enfim, reeducar a população sobre o que é doar.A doação não é um favor. Não é um ato de caridade de quem "tem" para quem "não tem". A doação é uma contrapartida cívica. Todos nós nos beneficiamos de uma sociedade menos violenta, mais justa e com mais educação. As OSCs são as organizações que trabalham em nosso nome para construir essa sociedade. Ao doar para uma OSC, e ao financiar também a sua capacitação e as suas ferramentas de gestão, não estamos fazendo um favor. Estamos fazendo um investimento inteligente no tipo de mundo em que queremos viver.
Rodrigo Franzot - CEO da Bliiv (www.bliiv.com.br)
“Este texto contou com o apoio de inteligência artificial para ajustes de clareza, revisão gramatical e reestruturação de períodos excessivamente longos, preservando integralmente o conteúdo, as ideias e o estilo original do autor.”






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