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Filantropia Estratégica no Divã, segunda sessão

  • culturadedoar
  • 11 de set.
  • 4 min de leitura

Por Joana Ribeiro Mortari ativista por uma cultura de doação coerente com as mudanças que queremos. Co-criadora e integrante do comitê coordenador do Movimento por uma Cultura de Doação, idealizadora do Filme Doar e consultora da Philó Práticas Filantrópicas.


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Filantropia Estratégica entra no consultório da terapeuta após um fim de semana bebericando caipirinhas com seu melhor amigo, Altruísmo Eficaz, no Copacabana Palace. Sentindo-se confiante de que não há nada de errado com ela e que as dúvidas que pairavam não passavam de um tremor momentâneo em sua autoconfiança, superado. Ao olhar para a terapeuta e para os ipês amarelos em flor ao longo da Avenida Faria Lima, do lado de fora da janela, ela rapidamente mergulha em sua bem ensaiada fala de abertura.


“Está tudo bem, doutora. No final das contas, acho que não vou precisar de todas as sessões que combinamos. Tive um fim de semana revelador e percebi que, na verdade, não há filantropia sem uma mudança clara e mensurável no final da linha, e estou bem equipada para alcançá-la. Eu sou a estratégia”.


“Que pensamento interessante”, responde a terapeuta junguiana, após um gole fiel de sua bebida. “Me ajude a entender: o que significa o seu nome, filantropia?”


“Olha, se você der um basta em todo o lenga-lenga e otimizar sua pesquisa, como eu faço, perguntando ao ChatGPT, ele dirá que isso vem das raízes gregas philos (amor) e anthropos (humano), então significa literalmente ‘amor pela humanidade’.”


“Entendi. E é isso que você faz? Ama a humanidade?”


“Honestamente, é um pouco cafona para o meu gosto”, responde Filantropia Estratégica com um olhar de desdém. “Eu não me posiciono dessa forma. Falar isso traz um certo ar de soltura, paz e amor, sem ação ou resultado claro. É por isso que enfatizo ‘estratégico’, entendeu? O objetivo é me diferenciar de todo o jargão da filantropia tradicional e sinalizar um continuum de evolução.”


“Entendo”, responde a terapeuta. “Então você se sente como uma evolução da filantropia tradicional porque pode planejar, medir e resolver problemas, enquanto a filantropia como era, ou tradicionalmente, é frequentemente associada a benfeitores ignorantes que não têm um plano claro para a mudança.”


“É… é um bom resumo”, concorda ela com a cabeça, sentindo-se pronta para se levantar e sair da sessão para todo o sempre. 


“Hum”, reflete a terapeuta levantando as sobrancelhas em curiosidade, “e se eu te dissesse que a etimologia da filantropia está ligada ao mito de Prometeu, que roubou o fogo sagrado dos deuses para dar aos humanos. Ele foi rotulado como filantropo, ou amante dos humanos — e não de uma maneira positiva, devo dizer. Na verdade, os deuses ficaram extremamente irritados com a traição de Prometeu e o puniram de uma maneira grotesca por toda a eternidade. Isso dá um novo significado à compreensão do seu nome?”


“É uma boa história, eu não sabia disso. Mas que diferença isso faz para o meu propósito? Quero dizer, não estamos mais na Grécia Antiga...


“Bom, Carl Jung diz que um nome pode conter dicas arquetípicas sobre o desenrolar do caminho de vida de uma pessoa. Como a vida é um processo de individuação da alma...” ela pausa, ponderando se sua cliente tinha alma, mas se recompõe rapidamente. “Se você recebeu um nome que remete à traição do status quo, o que isso implica sobre o seu futuro? E o que significa abordar isso estrategicamente?” 


Confusa — quem não ficaria — e frustrada por ter perdido a oportunidade de ouro ter saído da sessão logo no começo, Filantropia Estratégica se move na cadeira, buscando algum tipo de conforto.


“Não sei, na verdade. Quero dizer, no fim das contas, tem a ver com tornar o mundo um lugar melhor, certo? Um lugar mais justo para todos. Se isso requer abrir novos caminhos e mudar a si mesmo do que era esperado, acho que faz sentido.” Ela faz uma pausa, olhando para longe, como se tivesse sido atraída por um estranho fluxo gravitacional de consciência. “No fim das contas”, ela continua, “a maioria das pessoas que doam ou recebem dinheiro querem a mesma coisa.” Ela faz outra pausa, seus pensamentos interrompidos pelos eventos atuais nos Estados Unidos e ao redor do mundo. “Bem, talvez seja melhor nos contentarmos com ‘na maioria das vezes’. Mas, de qualquer forma, na maioria das vezes, doadores e beneficiários são engrenagens da mesma máquina, cada um desempenhando um papel importante na promoção da mudança...”


Após um breve e interminável momento de silêncio...


“E talvez dar dinheiro sem uma estratégia pré-definida permita que aqueles que o recebem definam a estratégia com base em suas experiências de vida e compreensão de uma situação... tipo, eu duvido que os humanos tivessem o mesmo uso para o fogo do que os deuses, certo? Quero dizer, a maneira como os humanos usaram o fogo mudou suas vidas para sempre, atendendo às suas necessidades. Eles provavelmente também sofreram algumas queimaduras ao longo do caminho. E isso seria, de certa forma, uma traição ao que eu deveria ser.”


“Como assim?”, pergunta a terapeuta, já quinze minutos depois do final da sessão e com um sorriso sutil em seus lábios, secretamente ansiosa para se livrar do kombucha. 


Bom... Se os deuses tivessem dado o fogo aos humanos e dito como eles poderiam usá-lo, quando poderiam usá-lo e que o tirariam dos humanos se usassem o fogo de forma errada, será que os humanos teriam se tornado o que são?


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Agradecimentos a Veridiana Aleixo pelos insights junguianos.

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Produzido pela equipe do Movimento por uma Cultura de Doação 2024

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