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Entre o discurso e o impacto: o déficit de compromisso do investimento social brasileiro

  • culturadedoar
  • 9 de out.
  • 6 min de leitura

Por Rodrigo “Kiko” Afonso, CEO Ação da Cidadania, integrante do Movimento por uma Cultura de Doação.


Criada com IA
Criada com IA

Há uma história confortável que a elite econômica do Sul Global gosta de contar a si mesma.


É a narrativa de que estamos vivendo uma nova era da filantropia, de que empresários, famílias ricas e grandes grupos econômicos estão mais conscientes, engajados e dispostos a contribuir com o bem comum. Mas basta raspar a superfície dessa retórica para perceber o que realmente existe por baixo: status, autopromoção e conveniência. O que chamam de filantropia ainda é, na maioria dos casos, caridade de relações pessoais — não investimento social estratégico. É um circuito fechado de prestígio, um jogo de poder entre iguais, em que o impacto real importa menos do que a foto no evento.


Relatórios e conferências vendem a ideia de que o Sul Global vive um florescimento filantrópico. Mas os números desmentem a euforia. No Brasil, segundo o Censo GIFE 2022, o investimento social privado das empresas e institutos somou cerca de R$ 5,3 bilhões, o equivalente a 0,23% do PIB. Nos Estados Unidos, esse número é quase dez vezes maior, proporcionalmente: o país investe cerca de 2% do PIB em doações filantrópicas, movimentando mais de US$ 400 bilhões por ano. O contraste é brutal. O Brasil tem mais de 315 bilionários e 70 mil pessoas com patrimônio superior a R$ 50 milhões, mas menos de 3 mil doadores institucionais ativos. Apenas 5% das famílias de alta renda têm histórico de doação contínua — e a maioria doa valores inferiores a 0,5% da renda anual. A CAF (Charities Aid Foundation) coloca o Brasil na 74ª posição entre 119 países no ranking global de generosidade. A conclusão é simples: não é falta de dinheiro — é falta de compromisso.


Esse vazio não é apenas econômico, é cultural. Durante séculos, o Sul Global foi moldado por uma lógica patrimonialista e extrativista que ensinou suas elites a acumular, não a redistribuir. A ideia de “devolver à sociedade” nunca se consolidou como um valor civilizatório, e sim como um gesto pessoal de benevolência — muitas vezes mais voltado à reputação do que à transformação. Enquanto o Norte estruturou um ecossistema filantrópico com métricas, auditorias e cultura de legado, o Sul ainda opera na base da improvisação e do carisma. Doa-se por empatia, não por estratégia. Por afinidade, não por propósito. A filantropia permanece artesanal, frágil e emocional, dependente da boa vontade e das relações pessoais de quem tem poder — e não de uma visão técnica de impacto real.


A filantropia brasileira, e boa parte da latino-americana, funciona como um clube fechado. São as mesmas famílias, as mesmas fundações, os mesmos sobrenomes. As decisões sobre quem recebe, quanto e para quê são tomadas entre conhecidos. Quem circula nesse meio sabe: as doações acontecem porque alguém conhece alguém. Projetos comunitários, negros, indígenas ou periféricos raramente entram na roda — não porque faltem resultados, mas porque não têm o sobrenome certo, nem o networking certo. É a filantropia de salão: elegante, polida e absolutamente estéril. Um circuito em que o dinheiro circula, mas o poder não se redistribui. Um modelo que gera conforto moral, mas nenhum desconforto social. Não é sobre transformar o país; é sobre continuar sendo convidado para o jantar.


Os grandes eventos nacionais de filantropia são a vitrine mais explícita desse teatro. Auditórios luxuosos, painéis cuidadosamente montados, iluminação perfeita, e um roteiro previsível de autoelogios e catarse coletiva de bondade. Ali não há espaço para incômodos. Não se fala da ausência de impacto real, da falta de qualificação técnica do setor, da concentração absurda de recursos em poucos nomes. Os organizadores admitem o que todos sabem: se trouxermos falas críticas, os filantropos deixam de ir. Afinal, ninguém participa desses encontros para ouvir verdades — vão para se sentir virtuosos. É um espetáculo de autoelogio, onde os presentes aplaudem uns aos outros por “fazer tanto”, enquanto o dinheiro continua circulando entre os mesmos amigos e as mesmas mesas. Aplausos, champanhe e cheques gordos saltam no palco. Do lado de fora, longe do ar-condicionado e das câmeras, estão as organizações que atuam nos territórios mais sofridos do país — as que enfrentam a fome, o abandono e a violência com o que sobra das mesas dos ricos. Elas não são convidadas, não aparecem nas fotos, e raramente recebem recursos. Enquanto uns trocam elogios, outros trocam o jantar por doações. O abismo moral se mede pela distância entre o palco e o território.


E há ainda os messiânicos, que transformam a filantropia em culto pessoal. Figuras carismáticas que constroem ONGs em torno da própria imagem, reúnem amigos influentes, atraem holofotes e se apresentam como enviados por Deus ou por alguma missão superior de benevolência. É a filantropia messiânica, mais centrada no ego do que na causa. Seus eventos são uma mistura de talk show e missa laica, com discursos emocionados, aplausos e flashes de gratidão. Do lado de fora, as organizações sérias seguem tentando pagar a conta de luz. A filantropia brasileira virou, em boa parte, um teatro de boas intenções, um mercado de vaidades travestido de solidariedade, onde o prestígio é a principal recompensa e o impacto se mede em curtidas e fotos de palco.


Enquanto isso, as grandes corporações ostentam relatórios ESG e discursos de neutralidade de carbono em Londres, Nova York ou Paris, mas seguem operando aqui com práticas ultrapassadas: baixos salários, exploração ambiental, cadeias de produção precárias e quase nenhum investimento social proporcional ao lucro. No Norte, elas compensam carbono; no Sul, compensam culpa. E as empresas locais não ficam atrás. Com lucros recordes, tratam o investimento social como marketing. Patrocinam campanhas, não transformações. Querem o selo, não a consequência. Falam de propósito, mas agem por conveniência. É o capitalismo de verniz social — um modelo que lava a consciência, não a desigualdade.


A verdadeira filantropia exige coragem. Coragem para financiar o que não é popular, o que incomoda, o que confronta o poder. Mas nossas elites preferem as causas neutras e fotogênicas — educação genérica, reciclagem, plantio de árvores. Quase ninguém quer investir em fome, equidade racial, democracia ou direitos humanos, porque essas pautas mexem onde dói: no privilégio, na estrutura, no poder. A elite brasileira quer mudar o mundo — desde que o mundo não mude ela.


E por trás de tudo isso há um autoengano ainda mais profundo: a crença de que o dinheiro da transformação virá de fora. Que basta mostrarmos propósito e urgência que os fundos internacionais chegarão. Mas a verdade é dura: não virão. A Europa financia sua própria transição ecológica com o dinheiro dos europeus. Os Estados Unidos sustentam sua filantropia com recursos internos, deduções fiscais e uma cultura de doação consolidada. O capital internacional está se voltando para dentro — cada país cuidando de si. O Brasil não é prioridade para as grandes carteiras globais de investimento social. E se esperarmos que sejam eles a bancar a reconstrução social e climática do país, ficaremos parados enquanto o colapso avança. O dinheiro da transformação não virá de fora. Virá do espelho.


O problema não é falta de riqueza; é falta de consciência de pertencimento. O Brasil tem uma das elites mais ricas e concentradas do planeta, mas também uma das mais distantes do país real. É uma elite que mora aqui, mas vive como se não vivesse. Que explora aqui, mas doa para causas distantes. Que quer reconhecimento global, mas evita qualquer desconforto local. E enquanto isso, quem sustenta o combate à fome, à pobreza e às mudanças climáticas são as organizações da sociedade civil — as que não têm sobrenome, mas têm propósito; as que não têm recursos, mas têm coragem.


Está na hora de parar de terceirizar a responsabilidade. O Brasil não é um país pobre; é um país mal distribuído. O futuro social e climático do país depende menos das conferências internacionais e mais do que as famílias mais ricas, as grandes empresas e os fundos locais estão dispostos a fazer — e a abrir mão. Se o dinheiro não sair dos cofres de quem lucra com o Brasil, o país não terá como financiar sua própria sobrevivência. O investimento social e climático não virá de fora. Virá de dentro — das fortunas, dos lucros, dos balanços e das consciências que habitam este território.


O Sul Global precisa sair da varanda. Parar de observar o mundo em colapso enquanto brinda em coquetéis sobre impacto. Parar de esperar o cheque internacional que nunca chega. E finalmente colocar o dinheiro onde coloca o discurso. Não há justiça social possível se o dinheiro continuar circulando entre iguais. Não há futuro verde se o verde continuar nas contas bancárias. Não há transformação se a elite continuar olhando para fora enquanto o país arde por dentro. A verdadeira filantropia começa quando o Sul decide cuidar de si — quando o poder desce do palco, o dinheiro sai da bolha e a consciência entra em campo.

O Brasil não precisa de salvadores globais.


Precisa de coragem doméstica.


E essa, infelizmente, ainda é o ativo mais escasso do nosso mercado.

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