Raça, território e confiança: uma conversa necessária para a filantropia
- culturadedoar
- 2 de out.
- 5 min de leitura
Por Clesio Sabino (educador, Diretor na Associação Bem Comum), Renata Saavedra (jornalista, Coordenadora Programática e de Comunicação na Bem-Te-Vi Diversidade) e Vanessa Lucena (relações públicas, Coordenadora Executiva na Bem-Te-Vi Diversidade). Os três são integrantes do movimento por uma cultura de doação.

Quando falamos em doação ou mobilização de recursos, a máxima diz que, em primeiro lugar, é preciso pedir. Mas quem pode pedir? Quais são os espaços e momentos em que é “permitido” ou é de “bom tom” pedir?
Este é um texto coletivo, fruto de um diálogo entre uma organização doadora e uma organização apoiada, sobre os obstáculos - dos invisíveis aos mais chamativos - para pedir doações.
Do chapéu de organização doadora
Recentemente nos deparamos com um poema anônimo que reflete muito do que vemos nos espaços e eventos de filantropia, e traduzimos livremente abaixo:
"ESSE NÃO É UM ESPAÇO PARA PEDIDOS
Fui a um espaço de financiadores e essas palavras foram sutilmente impressas em mim.
Os financiadores queriam dizer: "mesmo que eu esteja aqui, ainda sou inacessível para você".
Os financiadores queriam dizer: "você pode me pedir para fazer qualquer coisa, exceto o trabalho para o qual sou pago".
Os financiadores queriam dizer: "eu não respondo aos seus e-mails, mas quando você me encontrar aqui, por favor não fale sobre as coisas que importam para você".
Financiadores estão dizendo que querem espaço para respirar!
Eles não querem ser vistos como "pedaços de carne".
Eles querem ser vistos como co-conspiradores, sem fazer a conspiração de fato.
Eles querem ser vistos como companheiros de viagem, sem fazer a viagem de fato.
Oh, como deve ser difícil para eles!
Querido financiador, eu também desejo aliviar o fardo sobre os seus ombros.
Estou em busca de recursos. Você gostaria de trocar de lugar?”
De forma muito direta, o poema fala de uma prática muito comum e naturalizada das organizações doadoras e seus representantes: a de se incomodarem e evitarem pedidos de apoios, como se elas não existissem para receber e analisar (e como se não dependessem de) pedidos de apoio.
Essa postura naturalizada alimenta um incômodo e um constrangimento na relação, que limita as organizações donatárias. A lógica que prevalece é de que donatários precisam dos doadores, e não de que são interdependentes. O que não faz sentido, se a missão de alguns é doar!
Na prática, a doação (e mesmo a escuta que não necessariamente se desdobra em doação) ainda parece “favor”, e vive-se o pedido com insegurança e medo. Mas não é igual para todo mundo, claro. Esse constrangimento tem raça, classe e território.
Mesmo em parcerias já estabelecidas com organizações apoiadas, notamos que algumas (sobretudo organizações lideradas por pessoas negras e periféricas) não tomaram a iniciativa de perguntar sobre a possível renovação dos contratos de apoios. Ao conversarmos sobre isso, elas destacaram (1) a falta de estrutura (“não tem na equipe a pessoa atenta para ver a data dos contratos, fazer contato”) e (2) o medo, a insegurança e o desconforto para abordar o assunto.
Enquanto isso, também vemos a facilidade com que organizações lideradas por pessoas brancas e próximas dos círculos de doadores fazem pedidos de doações. “Preciso que as pessoas se comprometam por 5 anos”, “fico indignada com o que os financiadores nos pedem”, “a gente coloca muitos movimentos em curso, as pessoas contam com nosso trabalho”, dizem, com toda razão. Não há medo ou constrangimento.
Num contexto em que o campo debate tanto a chamada filantropia baseada na confiança, essas experiências mostram que a maioria das organizações donatárias não está confiando nas doadoras - para poder falar do que precisam, negociar apoios, contar com uma renovação da parceria.
Enquanto campo, (re)produzimos ambientes que limitam as conversas.
Não queremos só confiar, queremos ser confiáveis, abrir espaços que estimulem conversas. Temos aprendido que, para isso, em algumas relações, precisamos tomar mais a iniciativa.
Do chapéu de organização donatária
Sou gestor responsável por manter uma organização pequena, de base territorial no extremo sul da cidade de São Paulo, que a partir da pandemia criou uma estratégia de unir o trabalho educativo ao trabalho assistencial, com vistas a apoiar famílias que se encontram abaixo da linha de pobreza, oferecendo atividades educativas diárias para crianças e adolescentes e cestas de alimentação para as suas famílias. A partir desse lugar, o desafio da busca por recursos é como caminhar em busca de um “oásis no deserto”.
A tarefa de captar recursos é profundamente afetada pelas origens das ações sociais no Brasil, que nos remetem a um tipo de filantropia religiosa, motivada por uma elite, que tinha como princípio amparar os menos favorecidos. Ser um gestor de uma organização social que não teve a sua própria origem na elite, mas sim, nas mesmas classes empobrecidas, trabalhadoras e negras, que atendemos na Bem Comum, nos coloca mais desafios.
A começar que a captação de recursos é uma tarefa profundamente dependente de uma rede de contatos, principalmente contatos que disponham de recursos para serem doados, e que tenham redes de relações acessíveis.
Cumprir essa tarefa sem ser dessa origem social adiciona um elemento a mais de dificuldade; captar recursos financeiros sem ser uma pessoa da elite gera desconfiança, além de que, no Brasil, falar em dinheiro sendo de origem popular é sempre um tabu, numa sociedade muito desigual e marcada pelo estigma da corrupção, pedir dinheiro para uma causa torna-se uma tarefa hercúlea.
Ademais a aproximação com espaços frequentados por possíveis doadores também demanda que saibamos utilizar uma certa etiqueta, linguagem, símbolos e signos que não estão presentes no cotidiano de um trabalhador/educador popular. Eventos, jantares, palestras, reuniões… são inúmeras variáveis que não são contabilizadas nos workshops de captação de recursos. Não ter sido educado nesses espaços e frequentado uma certa elite aumenta muito as dificuldades.
Isso é facilmente observável quando, ainda hoje, olhamos os dirigentes, captadores e articuladores de grandes organizações. Muitos estudaram com grandes empresários nos melhores colégios e universidades, são amigos de infância de pessoas influentes. Conseguem que amigos ou parentes mobilizem redes para eventos sociais ou jantares, todos esses elementos que conjugam classe e raça estão muito presentes nesse campo no Brasil, e nós precisamos jogar luz nesse aspecto que constitui de maneira muito forte o terceiro setor. Já que a maioria das organizações que estão na linha de frente do trabalho pelo Brasil afora, seja de fortalecimento de comunidades, empoderamento de mulheres, proteção à infância, geração de renda, cidadania, direitos humanos, etc… em sua grande maioria são tocados, gerenciados por trabalhadores que não vêm de uma origem abastada, e nem de redes de influência poderosas, mas sim, da mesma origem de seus atendidos.
Abordar um financiador ou chamar uma conversa a respeito de renovação de financiamentos sempre parece uma conversa de alguém pedindo a outro alguém que tem e nem sempre quer dar, de maneira geral está posta uma relação de poder desigual. Ainda estamos longe da compreensão de que as organizações produzem tecnologias sociais para o desenvolvimento social do país, em muitos aspectos, melhor estabelecidas até que as iniciativas do Estado.
Mudar o paradigma das organizações “pedintes” para as organizações “potentes” é uma urgência.






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