O poder das estratégias coletivas para transformar realidades
- culturadedoar
- há 11 minutos
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A voz dessa semana é de Sabrina Vida e Julia Brandão, sócias na quivirá e integrantes do Movimento por uma Cultura de Doação.

As mudanças estruturais que queremos ver no mundo — como justiça social, equidade racial e uma transição ecológica mais justa — não podem mais depender apenas da visão ou da boa vontade de algumas poucas pessoas ou organizações. A ideia de que a filantropia se resume a grandes doações feitas por empresas ou pessoas muito ricas já mostrou suas limitações. Mesmo quando bem-intencionadas, essas iniciativas costumam reforçar desigualdades de poder, definir quais temas são prioridade e ignorar as realidades complexas dos territórios em que atuam. Isso tudo acaba afastando a população do engajamento social.
Na prática, a filantropia institucional, feita por grandes fundações, geralmente funciona por meio de processos de aprovação, regras e expectativas definidas por quem doa. Em vez de questionar as estruturas de poder, ela as mantém sob controle. Em vez de lidar com críticas, tende a suavizá-las. Assim, limita o potencial de mudanças profundas.
Além disso, ao reforçar a ideia de que doar é algo reservado a quem possui grandes quantias de dinheiro, esse modelo acaba excluindo a maioria das pessoas do processo de transformação. Muitas deixam de se reconhecer como parte ativa da mudança, como se apenas doações expressivas conferissem legitimidade à ação. Isso não apenas limita o engajamento da sociedade, mas também concentra o poder de decisão — sobre quais causas apoiar e de que forma — nas mãos de poucos.
Mas há um outro caminho.
As estratégias construídas de forma coletiva — também chamadas de collectively owned strategies — são uma alternativa para mudar esse cenário. Elas partem do entendimento de que ninguém, por mais experiente ou bem-intencionado que seja, tem sozinho todas as respostas para os desafios complexos que enfrentamos hoje. Esse tipo de estratégia exige escuta verdadeira, abertura para questionar o que está posto, disposição para o diálogo e um compromisso com soluções criadas em conjunto.
Quando organizações, movimentos, financiadores e comunidades definem juntos os problemas, as prioridades e os caminhos, o processo se torna mais democrático, mais conectado à realidade e, principalmente, mais eficaz. Não se trata de aplicar uma ideia pronta vinda de fora, mas de construir uma visão de futuro de forma colaborativa.
Um exemplo desse modelo é o Fundo Baobá para Equidade Racial. Criado com o objetivo de promover justiça racial no Brasil, o fundo atua de forma estruturante e com protagonismo negro. Sua governança é composta por pessoas negras, e suas decisões são tomadas com base em escuta e articulação com diferentes atores da sociedade civil, priorizando soluções que nascem dos próprios territórios. Ao fortalecer organizações lideradas por pessoas negras e apoiar causas historicamente subfinanciadas, o Baobá mostra como fundos filantrópicos coletivos podem redistribuir poder e gerar impacto.
Experiências como essa evidenciam o potencial das estratégias coletivas para ampliar o engajamento social e fortalecer o senso de pertencimento. Quando as pessoas sentem que fizeram parte da construção da estratégia, que foram ouvidas e que estão contribuindo para algo maior, o envolvimento se aprofunda e dura mais. É assim que começa a se formar uma verdadeira Cultura de Doação — baseada em confiança mútua, corresponsabilidade e continuidade, e não apenas em atos pontuais de generosidade de poucos.
Também é importante lembrar: doar e se engajar não precisa envolver grandes quantias de dinheiro. O que nos mobiliza, o que toca nossa empatia e nosso senso de justiça, também é força legítima para transformar o mundo. Uma cultura de doação viva e inclusiva se constrói quando as pessoas se sentem bem-vindas e reconhecidas em suas diferentes formas de contribuir.
Hoje, muitas organizações comunitárias passam por dificuldades para se manter. A queda das doações de base e a concentração de recursos agravam ainda mais essa situação. Apoiar estratégias coletivas, neste contexto, deixa de ser uma opção e passa a ser uma responsabilidade ética. Precisamos investir em capacidades locais, em redes de colaboração e em formas de atuação que preparem os territórios para os desafios do presente e do futuro.
Claro que estratégias coletivas exigem tempo, escuta, cuidado e disposição para lidar com conflitos e diferenças. Mas é justamente isso que as torna tão poderosas: elas nascem do encontro, do aprendizado contínuo e do compromisso com mudanças profundas e duradouras.
Quando diferentes atores compartilham responsabilidades e decisões, surge um verdadeiro senso de agência coletiva. As prioridades deixam de ser impostas de cima para baixo e passam a ser construídas junto com quem vive os problemas e conhece, na prática, os caminhos para solucioná-los. Isso fortalece os ecossistemas locais, estimula a inovação, amplia a legitimidade e promove ações coordenadas — muito mais eficazes do que esforços isolados.
Apostar em estratégias coletivas é apostar em um futuro mais justo e democrático, no qual a transformação social não é privilégio de poucos, mas responsabilidade e construção de todos.
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